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Psicomotricidade na Odontologia

BOCA-DENTE-SORRISO – SUA IMPORTÂNCIA NA IMAGEM CORPORAL

1 – INTRODUÇÃO

Quando um paciente chega ao consultório odontológico, toda uma história vem como plano de fundo na vida desse sujeito. A busca do profissional retrata sempre uma “falta” (do dente, da função mastigatória, da estética, da perda, enfim…do luto).

Nisso pode-se perceber que a relação do indivíduo com o próprio corpo tem vital importância na qualidade de vida, abrangendo os âmbitos físico e psíquico e é determinante no estabelecimento e manutenção das doenças.

Estudada desde o início do século passado na Psicologia, a imagem corporal é uma representação mental do corpo. Ultrapassa o conceito de esquema corporal, uma vez que a estes são acrescidos sentimentos, emoções e valores, correspondendo a um conjunto funcional que favorece o desenvolvimento e que se organiza como um núcleo central da personalidade.

A imagem corporal inclui representações psíquicas conscientes e inconscientes e a forma como estruturamos essa imagem é de vital importância na identificação diagnóstica dos sintomas corpóreos, consequentemente das doenças. Além disso é o fator principal na satisfação que temos com o nosso próprio corpo.

 A imagem corporal implica uma abordagem psicossomática, uma vez que o corpo e a psique, movimentos e percepções, relações afetivas e sociais são aspectos inseparáveis e indispensáveis na sua organização. A imagem corporal representa um núcleo central da personalidade, uma vez que somada à autopercepção e autoestima, compõe o substrato corporal do ego, que constitui a base da noção da própria identidade. É na história corporal que são registrados os conflitos em relação à estruturação da identidade, e dela decorrerá a uma maior ou menor adequação às situações de vida, podendo haver a formação de sintomas corpóreos.

Vivemos hoje num mundo onde a moda e a beleza física são valores de extrema importância. Tais exigências culturais refletem na formação de imagens do corpo na psique. Existe uma obsessão pela saúde e pelo corpo, que se encontra superinvestido. Numa época de regimes alimentares, malhação excessiva, culto à juventude, onde os tratamentos cosméticos rapidamente tornam-se obsoletos; ficamos alienados e insatisfeitos, sempre em busca da nossa imagem idealizada. O mesmo vem ocorrendo em relação à boca e à estética do sorriso.

Um verdadeiro contingente de técnicas, materiais, intervenções, profissionais estão sendo criados para que cada paciente tenha sua autoestima aumentada e consequentemente sua autoimagem beneficiada.

2- CORPO – INSTRUMENTO DA EMOÇÃO  

Freud, considerado o pai da psicanálise introduziu a ideia de que não temos um corpo, mas que somos um corpo. Constatou que o ser humano funciona como uma unidade corpo-mente. Na psicanálise se encontra, portanto, uma das primeiras tentativas, assim como na filosofia, na psiquiatria e outras correntes psicológicas do início do século XX, de se resgatar o valor do corpo o objeto psicossomático.

Reich (1866) propôs uma teoria a partir da ideia de energia do corpo sutil buscando maior conhecimento sobre os fundamentos da vida humana dentro do dinamismo universal que chamou de ” Oceano Cósmico de Energia Orgânica”. Cada músculo rígido, para Reich, contém a história e o significado de sua existência, expressando conflitos latentes.

Jung (1928) diz que o reconhecimento do corpo não toleraria uma filosofia que o negasse em nome do espírito. Fala que devemos nos conciliar com a misteriosa verdade que o espírito é a vida do corpo vista de dentro e o corpo é a manifestação externa da vida do espírito, os dois sendo realmente um.

 Ele diz, numa conferência, que “0 que se pode observar empiricamente é que os processos do corpo e os processos mentais desenrolam-se simultaneamente e de maneira totalmente misteriosa para nós.” Fez um paralelo com física moderna, dizendo que está também teria que estudar mais de um fenômeno para entender uma mesma realidade e prossegue dizendo que “corpo e psique são dois aspectos do ser vivo”, e prefere afirmar que “‘dois elementos agem simultaneamente” pois não podemos imaginá-los separados.

Neumann, em 1949, nos coloca que a sensação geral do corpo é a base natural da sensação da personalidade e o caráter único do corpo de um homem, que misturados a fatores hereditários é o próprio fundamento da individualidade.

Esses conceitos de corpo objetivo nos levam a pensar num “corpo arquetípico”. Quando sinais corporais como espasmos, dores ou outros sintomas se localizam em determinadas partes do corpo (estômago, cabeça, coração e boca), podemos intuí-los como manifestação do “corpo arquétipo”, utilizando o físico como símbolo.

3 – IMAGEM CORPORAL E SUAS RELAÇÕES  

Como vimos a imagem corporal é a base da noção da própria identidade. Reflete história de uma vida, percurso de um corpo no tempo e no espaço. Percepções que se concretizam em um corpo (representado) e que é resultado complexo de toda atividade cinética. Ela é a história de nossas experiências perceptivas e ponto de partida para o desenvolvimento da identidade da pessoa. E a representação ou figuração mental que o indivíduo tem de seu esquema corporal, onde, por meio da percepção do corpo, o indivíduo se diferencia do mundo externo.

Para melhor esclarecermos essa definição e a relação que pretendemos fazer com “boca-dente-sorriso” se faz necessário desmembrarmos os significados e significantes envolvidos:

Imagem é a expressão temporal de várias regiões do cérebro em atividade mais referências individuais ligadas às vivências. A relação corporal se faz presente nas representações mentais. Já a imagem corporal tem na “mãe” um elemento facilitador na estruturação de uma identidade corporal, por validar o corpo do outro (bebê).

Entendemos por dor, o excesso de excitação erógena (pulsional). Um corpo ou um órgão mais “hipocondríaco” é um elemento mais libidinizado. Daí a concentração da imagem corporal no órgão dolorido. A dor é o elo entre o corpo e o psiquismo. Está intimamente ligada às imagens corporais. Muitos estudos já nos comprovaram que artrite, enxaqueca, fibromialgia, dor muscular crônica e dor de dente são indissociáveis. Apontam para os limites/ o desamparo.

Já o esquema corporal é a organização das sensações relativas ao próprio corpo e sua relação com o mundo exterior, considerando a atividade tônica (voltada para o próprio sujeito), e atividade cinética (voltada para o exterior) do organismo.

A percepção é a representação que o indivíduo faz de si próprio. Diz respeito à consciência que ele tem do corpo que experimenta. Ocorre aquilo que envolve tanto no interior como na superfície de seu corpo, dizendo respeito à atividade tânica e à atividade cinética.

Entendemos como autoestima a satisfação do indivíduo consigo mesmo, envolvendo uma valorização, que pode ser positiva ou negativa. Encontra-se mais elevada naqueles indivíduos que têm correspondência amorosa ou se relacionam bem com o próprio erotismo. A autoestima tem importância fundamental no estabelecimento do narcisismo.

Assim, devemos buscar as explicações e a singularidade de nosso sentir, na integração de nossas sensações com outros elementos pertinentes ao nosso corpo, sejam eles culturais, fisiológicos ou afetivos, pois isso é que nos fará a adaptação necessária ao mundo externo.

4- BOCA: PORTA DE ENTRADA (E SAÍDA) DE EMOÇÕES  

O dentista deve conhecer o seu paciente, não só pelo que tem na boca, mas sim e principalmente, pelo que ele tem na mente, que pode estar o levando a um procedimento saudável ou doentio. Vai reconhecer que o que está se passando na boca pode ser consequência do que está se passando na mente e que trabalhar apenas o efeito é manter a patologia do paciente.

Quando esse profissional dá a escuta necessária, terá no paciente um ser humano cheio de expectativas e despertará nele a oportunidade de tirar de si as próprias causas da patologia que veio buscar tratamento. Disse Michel Ballint: ” O melhor remédio que damos ao nosso paciente, a melhor droga que injetamos, somos nós mesmos.”

 Nilson Denari, nos ensina que …”antes de fechar um diagnóstico sobre um dente, antes de condená-lo logo à primeira vista, nada mais terapêutico que darmos a ele, primeiramente, dignidade, carinho e uma condição mais saudável de vida, junto aos seus “dentes-irmãos”, através de contornos adequados, acertos oclusais, raspagem, profilaxia, para então depois fechar o diagnóstico.

Quanto ao paciente, deve ser informado da importância de sua participação durante o tratamento. Ele deve ser conscientizado de que aquele seu dente sofre por “estar só”, abandonado, sujo, triste, mal-amado. Caberá ao paciente entender que não se está falando somente de seu dente, mas do modo como ele vive.”

Com essa postura, o profissional manterá de forma gratificante uma relação harmoniosa com paciente e consequentemente, com seus dentes. Se ao examinar o meio bucal de seu paciente, ele procurar conhecer a fisiopatologia, a etiopatogenia e, principalmente, a psicofisiopatologia que circunda o existir desse ser todo o percurso terapêutico se cobrirá de bons resultados. Além disso, uma abordagem compreensiva, na história de vida dessa pessoa, através de seus relatados no decorrer das consultas, poderá identificar possíveis justificativas das patologias encontradas e, a partir daí, agir psicossomaticamente, sabendo ouvir, olhar e sentir as angústias de outro ser humano.

Mas não é só boa vontade e escuta que o profissional dentista deve ter. É fundamental ele se instrumentalizar com conhecimentos de psicologia e de neurolinguística, fazendo uso adequado da palavra. Esse conhecimento é que o distinguirá na classe profissional, por ter tido a capacidade de ser continente de quem o procurou.

Baseado na afirmação de Hipócrates, em 260 a.C.: “Todo doente é um ser em sofrimento físico e emocional” podemos afirmar que cada paciente deve receber um procedimento específico ao seu modo de ser. E clinicamente fácil observar que o tratamento que funciona bem para um paciente não funciona para o outro.

O dentista pode se sentir privilegiado diante do médico, pois a boca é um conjunto de órgãos visível à olho nu, no qual podemos observar com clareza os danos sofridos como consequência de fatores emocionais. Não precisamos de nenhuma pesquisa invasiva para observar facetas desgastadas de um bruxoma, sua xerostomia e a arquitetura nas bordas da língua copiando as faces linguais dos dentes inferiores e as estrias na face interna da bochecha acompanhando a linha da oclusão dental. Esses são sinais de pressão contínua na região oral, que não raro culminam em dores miofasciais ou articulares que, por sua vez, caracterizam pessoas ansiosas, do tipo das que “‘engolem sapo”, que explodem quando se sentem usadas, ou manipuladas ou, então, as perfeccionistas, cheias de culpas. Ou ainda, na observação dos pacientes crônicos, em qualquer quadro de patologia bucal podemos verificar que suas defesas orgânicas se encontram combalidas. Eles parecem verdadeiros “mortos-vivos”, enclausurados em um quadro depressivo, tornando-se presa fácil das doenças periodontais ou outra infecção qualquer.

 Sabendo que todo paciente é um ser em sofrimento, que se torna necessário entendê-lo, pois cada um é diferente do outro e tem seu próprio modo de viver, de adoecer e de conviver com o próximo, fica fácil compreender a importância que essa postura profissional terá na Imagem Corporal do paciente.

Consequentemente em sua autoestima, na qualidade de vida e nas relações sociais estabelecidas. Muitas vezes, essa postura implica saber usar o silêncio ou o “não sei” quando necessário; compreender o simbolismo da doença e o tipo de comunicação que o sintoma representa na vida daquele paciente. Ouvir o que ele fala, o que não quer falar e ainda o que pode estar pensando; entender o significado de seus gestos, de seus comportamentos, nas faltas, nos atrasos e no modo como ele procede na relação financeira estabelecida com o tratamento oferecido. Todos esses aspectos fazem parte da relação dentista-paciente e, se não forem adequadamente observados e analisados, podem se transformar em grandes vilões, responsáveis por impasses que ocorrem durante certos tratamentos.

Não é difícil reconhecer que é sempre mais fácil o paciente exteriorizar seus problemas somáticos do que os psíquicos. Michael Ballint escreve que, na ausência de soluções para seus problemas emocionais, as pessoas somatizam das mais variadas formas, peregrinando por diversas especialidades médicas, “fabricando” doenças de cunho cada vez mais graves.

Assim como valorizamos a microbiologia, a fisiologia, a histologia do sistema estomatognático, o mesmo interesse deveria ser dado ao modo como este sistema pode ser influenciado pelo sistema psíquico. Vários pesquisadores e /ou estudiosos já provaram que as expressões como consciente, id, ego, superego; instinto de morte e instinto de vida; sexualidade como forma de amor, e outros que compõe a literatura psicanalítica devem ser ouvidos nas salas de aula, nos corredores das faculdades, em cursos e congressos e, principalmente, nos consultórios odontológicos. Graças ainda a esses autores, podemos alcançar um estudo mais amplo das funções neuro-hormonais, ao estudarmos as estruturas cerebrais, como o eixo hipotálamo-hipófise e sua extensão às glândulas suprarrenais, em paralelo com a atuação do sistema simpático e parassimpático, peças fundamentais para o entendimento das mudanças orgânicas advindas dos conflitos intrapsíquicos. Muitos seriam os exemplos de que pela boca entram e saem emoções e sentimentos, como medo, raiva, amor e ódio. Está na boca a sexualidade, segundo Freud. Na odontologia estética, atrás da beleza que o paciente busca, esconde-se o amor-próprio. Ele não só resgata a beleza dos dentes, mas principalmente os dentes anteriores fazem renascer um contorno de lábio mais harmonioso e sensual. O martírio do espelho e dos olhares de ontem serão os prazeres de hoje e de amanhã. Frases mágicas como: ” Os seus dentes não estão à altura de seus olhos” ou “Não é justo não dar aos seus dentes a harmonia que seu rosto merece” são armas extremamente poderosas no desencadeamento da mudança. Denari cita o renomado psicanalista alemão George Groddeck (1992): “qualquer pessoa pode ajudar a curar uma dor no corpo ou na alma, seja ela um médico, um pastor, um curandeiro, um hipnotizador, uma mulher sábia ou uma mãe, assim como também faz a arte, seja ela a música, a dança, a pintura, a escultura ou a escrita. O importante é mobilizar o médico interior de cada paciente, porque, sem a vontade de viver, a melhora é temporal, mas a cura é impossível”.

Sorrir é a manifestação do lábio, sobre o que os olhos enxergam, o cérebro pensa e o coração sente. E o dentista é responsável por ele, em seus pacientes.

5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDER, G. EUTONIA- um caminho para a percepção corporal. São Paulo, Martins fontes, 1983.

ANZIEU, D. O Eu-pele. São Paulo, Casado Psicólogo, 1989.

CASTILHO, SM. A imagem corporal. Santo André, Esetec I.

DENARI, N. Boca Espelho da Alma, São Paulo, Editora Laser Print.

DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo, Editora

GRODDECK, G Estudos psicanalíticos sobre psicossomática. São Paulo: Perspectiva, 1992

LEBOULCH, J. O desenvolvimento psicomotor: do nascimento aos 6 anos. Porto Alegre, Artes médicas, 1982.

MELLO FILHO, J. E COLS. Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artmed, 1992.

PONTES, J.F. (org.). Curso de medicina socio psicossomática. São Paulo:IBEPEGE,1984 [Apostila].

RATE Y, J.F. E JOHNSONS Síndromes silenciosas. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

SCHILDER, P. A imagem do corpo. São Paulo, Martins Fontes, 1994.

SILVA, M.A.D. Quem ama não adoece. São Paulo: Best

TAVARES, M. C.G.C. A imagem corporal-conceito e desenvolvimento. São Paulo, Manole,2003.

VAYER, P. El niño frente al mundo. Barcelona, Editorial Científico-Médica, 1973.

VILLAÇA, N. E GÓES, F. Em nome do corpo. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.


Artigo publicado na Revista Odontoscience – Março 2007

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Cacilda G. Velasco

Especialista em Psicomotricidade, Titulada Especialista em Gerontopsicomotricidade pela Associação Brasileira de Psicomotricidade. Professora, Pedagoga e Profissional de Educação Física, responsável Técnica da Associação VEM SER. Vários livros publicados na área psicomotora e diferentes atuações acadêmicas com cursos, congressos, mesa redonda e atuação desde 1984 em Terapias Psicomotoras na Água.

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Cacilda G. Velasco

Especialista em Psicomotricidade, Titulada Especialista em Gerontopsicomotricidade pela Associação Brasileira de Psicomotricidade. Professora, Pedagoga e Profissional de Educação Física, responsável Técnica da Associação VEM SER. Vários livros publicados na área psicomotora e diferentes atuações acadêmicas com cursos, congressos, mesa redonda e atuação desde 1984 em Terapias Psicomotoras na Água.

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Prof. Dr. Rui Fernando Roque Martins

Professor Associado na Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa (UL)
Docente na licenciatura em Reabilitação Psicomotora e Coordenador do Curso do Mestrado em Reabilitação Psicomotora, da FMH – UL
Membro fundador e delegado português do Fórum Europeu de Psicomotricidade
Delegado Português da Organização Internacional de Psicomotricidade e Relaxação desde 1989.
Honoris Causa pela Organização Internacional de Psicomotricidade e Relaxação, pela contribuição para o desenvolvimento Internacional da Psicomotricidade
Membro fundador e Presidente da Associação Portuguesa de Psicomotricidade.